A Página 100
Fim de semana no blogue da RM é assim uma espécie de época baixa. Os aderentes têm mais com que se entreter, não postam, não vêm ler o que há por cá... daí eu ter achado que é uma boa altura para retomar a rubrica Página 100, que a fundadora deste blogue em boa hora lançou. E hoje não vão ser umas miseráveis linhas, vai ser mesmo toda a página 100!!! E eu justifico: uma vez que se trata de uma obra de Paul Auster, prémio Príncipe das Astúrias de Letras 2006, faz todo o sentido que lhe seja dado um relevo especial. Estava eu a lê-lo quando Paul Auster foi nomeado. Mas não é só esse o motivo. Trata-se um livro cheio de ternura e de que eu gostei imenso. A personagem principal é um cão, Mr. Bones. Para além de contar todas as conversas que o dono tinha com ele, transcreve também todos os seus pensamentos. A história é uma ternura e eu recomendo vivamente a sua leitura.
Um esclarecimento: Mr. Bones não é um collie, é um vira latas, mas apeteceu-me ilustrar este post com este simpático bicho... vá-se lá saber porquê!!!
Fiquem então com esta página 100! Ah! como sou uma leitorodependente tenho mais três páginas 100 a aguardar oportunidade...
TIMBUKTU de Paul Auster
Edições Asa
Página 100
O barulho abateu-se sobre ele como uma explosão e, antes que conseguisse identificar a sua origem - um pé humano aos pontapés à caixa - , já Henry abrira os olhos e desatara a gritar. Num instante, a própria caixa ergueu-se no ar. Uma torrente de luz matinal inundou os olhos de Mr. Bones e, por breves segundos, foi como se tivesse ficado cego. Ouviu um homem a gritar em chinês - e um instante depois já a caixa voava na direcção dos rabanetes de Henry. Mr. Chow erguia-se diante deles, envergando apenas uma camisola interior sem mangas e umas cuecas azuis, as veias do seu magro pescoço muito inchadas enquanto a incompreensível tirada prosseguia. Retalhava o ar com o indicador, apontando repetidamente para Mr. Bones, e Mr. Bones retorquia-lhe ladrando, desconcertado com a intensidade da raiva daquele homem, com a violência do pranto de Henry, com o súbito caos daquela cena histérica. O homem investiu contra Mr. Bones, mas o cão fintou-o e recuou, mantendo-se a uma distância segura. O homem avançou então para o rapaz, que estava já a tentar escapulir-se rastejendo pelo buraco sob a vedação. E, ou porque o rapaz não foi suficientemente rápido, ou porque começara a fuga demasiado tarde, o pai não demorou muito tempo a arrancá-lo ao refúgio, a pô-lo de pé e a dar-lhe uns tremendos sopapos na nuca. Por essa atura, também Mrs. Chow já descera ao quintal, disparando porta fora na sua camisa de dormir de flanela; e enquanto Mr. Chow continuava ao gritos com Henry, e Henry continuava a berrar com a sua estridente voz de soprano, Mrs. Chow resolveu juntar a sua voz à algazarra, dando largas à sua indignação pelo modo como pai e filho estavam a comportar-se. Mr. Bones retirou-se para o lado oposto do quintal. Nesse momento, sabia já que tudo estava perdido. Daquela batalha não poderia vir nada de bom, pelo menos para ele e, por muito que lamentasse a sorte de Henry, ainda lamentava mais o seu próprio fado. A única solução era sair dali, levantar ferro e zarpar.
Aguardou até que o homem e a mulher começaram a arrastar o rapaz para casa. Quando já estavam perto da porta das traseiras, Mr. Bones deu uma corrida rápida na direcção do buraco e rastejpu para o outro lado da vedação. Parou por um instante, esperando que Henry desaparecesse. Porém, quando já estava prestes a entrar, virou-se para Mr. Bones e gritou-lhe com aquela voz angustiada e penetrante que tinha: - Cal, não me deixes! Não me deixes Cal! - Como em resposta ao desespero do filho, Mr. Chow baixou-se, pegou numa pedra e atirou-a ao cão. Mr. Bones deu institivamente um salto para trás, mas, no momento em que o fez, sentiu vergonha de si mesmo por não ter permanecido firme no seu posto. Viu a pedra batendo com estrondo, mas perfeitamente inofensiva, na vedação metálica. Então, ladrou três vezes para se despedir, esperando que o rapaz entendesse que estava a falar com ele. Mr. Chow abriu a porta, Mrs. Chow empurrou Henry e Mr. Bones desatou a correr.
Nota:
Peço desculpa, mas deixei-me entusiasmar e transcrevi mais algumas linhas da página 101!
E, como acontece muitas vezes, nem sempre a página 100 é a mais significativa, mas... é a página 100!!!
6 Comentários:
Tem piada o nome do dono: Mr. Bones! deve ter sido o cão a dar-lhe esse nome!
Existe também uma comida de cão como o nome
CHOW
Há aqui publicidade dissimulada.
Mr. Bones foi o nome que o dono pôs ao cão, se calhar por ele ser magro, ou gostar de comer ossos, sei lá! E Chow é nome do homem chinês, acho que não tem nada a ver com comida para cão!
Ah! então Henry é o dono?
É que eu tinha partido do princípio que Timbuktu era o nome do cão... :p
Henry foi um dono temporário. Era filho de um chinês que não queria cães em casa, por isso o miúdo escondeu-o no quintal e... quando o pai descobriu, ...página 100. Mr. Bones andava à procura de novo dono depois da morte do que lhe tinha posto aquele nome. Se leres a pág.100, Henry chamou-lhe Cal... Por outro lado, Mr Bones tinha sido avisado pelo seu amado dono, de que deveria fugir dos bairros chineses... vá-se lá saber porquê!!!
Olha, lê o livro... que está numa estante perto de ti...
Obrigada pelos esclarecimentos!
Isto de ler só uma das páginas do meio do livro, não dá para perceber o enquadramento...
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