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quarta-feira, janeiro 10, 2007

Crónica do Falar Lisboetês

É um texto um pouco extenso e a modo que "regionalista".
No entanto achei-o bastante bom e gostava de o partilhar.´
É de Vital Moreira


"De súbito, o homem do quiosque de Lisboa a quem eu pedira os meus jornais
habituais interpelou-me:
- O senhor é do Norte, não é?
Respondi-lhe que não, que nasci na Bairrada e que resido há quase 40 anos em
Coimbra. Fitou-me perplexo. Logo compreendi que do ponto de vista de Lisboa
tudo o que fique para cima de Caneças pertence ao Norte, uma vaga região que
desce desde a Galiza até às portas da capital. Foi a minha vez de indagar
porque é que me considerava oriundo do Norte. Respondeu de pronto que era
pela forma como eu falava, querendo com isso significar obviamente que eu
não falava a língua tal como se fala na capital, que para ele,
presumivelmente, não poderia deixar de ser a forma autorizada de falar
português. Julgava eu que falava um português padrão, normalmente
identificado com a forma como se fala "grosso modo" entre Coimbra e Lisboa e
cuja versão erudita foi sendo irradiada desde o século XVI pela Universidade
de Coimbra, durante muitos séculos a única universidade portuguesa. Afinal
via-me agora reduzido à patológica condição de falante de um dialecto do
Norte, um desvio algo assim como a fala madeirense ou a açoriana. Na verdade
- logo me recordei -, não é preciso ser especialista para
verificar as evidentes particularidades do falar alfacinha dominante.
Por exemplo, "piscina" diz-se "pichina", "disciplina" diz-se "dichiplina". E
a mesma anomalia de pronúncia se verifica geralmente em todos os grupos
"sce" ou "sci": "crecher" em vez de "crescer", "seichentos" em vez de
"seiscentos", e assim por diante. O mesmo sucede quando uma palavra
terminada em "s" é seguida de outra começada por "si" ou "se". Por exemplo,
a expressão "os sintomas" sai algo parecido com "uchintomas", "dois
sistemas" como "doichistemas". Ainda na mesma linha a própria pronúncia "de
Lisboa" soa tipicamente a "L'jboa". Outra divergência notória tem a ver com
a pronúncia dos conjuntos "-elho" ou" -enho", que soam cada vez mais como
"-ânho" ou "-âlho", como ocorre por exemplo em "coelho", "joelho", "velho",
frequentemente ditos como "coâlho", "joâlho" e "vâlho". Uma outra tendência
cada vez mais vulgar é a de comer os sons,
sobretudo a sílaba final, que fica reduzida a uma consoante aspirada. Por
exemplo: "pov'" ou "continent'", em vez de "povo" e de "continente". Mas
essa fonofagia não se limita às sílabas finais. Se se atentar na pronúncia
da palavra "Portugal", ela soa muitas vezes como algo parecido com
"P'rt'gâl".
O que é mais grave é que esta forma de falar lisboeta não se limita às
classes populares, antes é compartilhada crescentemente por gente letrada e
pela generalidade do mundo da comunicação audiovisual, estando por isso a
expandir-se, sob a poderosa influência da rádio e da televisão. Penso que
não se trata de um desenvolvimento linguístico digno de aplauso. Este falar
português, cada vez mais cheio de "chês" e de "jês", é francamente
desagradável ao ouvido, afasta cada vez mais a pronúncia em relação à grafia
das palavras e torna o português europeu uma língua de sonoridade exótica,
cada vez mais incompreensível já não somente para os espanhóis (apesar da
facilidade com que nós os entendemos a eles), mas inclusive para os
brasileiros, cujo português mantém a pronúncia bem aberta das vogais e uma
rigorosa separação de todas as sílabas das palavras.
A propósito do português do Brasil, vou contar uma pequena história que se
passou comigo. Na minha primeira visita a esse país, fui uma vez convidado
para um programa de televisão em Florianópolis (Santa Catarina). Logo me
avisaram que precisava de falar devagar e tentar não comer os sons, sob pena
de não ser compreendido pelo público brasileiro, que tem enormes
dificuldades em compreender a língua comum, tal como falada correntemente em
Portugal. Devo ter-me saído airosamente do desafio, porque, no final, já em
"off", o entrevistador comentou: "O senhor fala muito bem português."
(Queria ele dizer que eu tinha falado um português inteligível para o ouvido
brasileiro.) Não me ocorreu melhor do que retorquir:- Sabe, fomos nós que o
inventámos...
Por vezes conto esta história aos meus alunos de mestrado brasileiros,
quando se me queixam de que nos primeiros tempos da sua estada em Portugal
têm grandes dificuldades em perceber os portugueses, justamente pelo modo
como o português é falado entre nós, especialmente no "dialecto" lisboetês
corrente nas estações de televisão.
Quando deixei o meu solícito dono do quiosque lisboeta do início desta
crónica, pensei dizer-lhe em jeito de despedida, parafraseando aquele
episódio brasileiro: - Sabe, a língua portuguesa caminhou de norte para
sul... Logo desisti, porém. Achei que ele tomaria a observação como uma
piada de mau gosto. Mas confesso que não me agrada nada a ideia de que, por
força da força homogeneizadora da televisão, cada vez mais portugueses sejam
"colonizados" pela maneira de falar lisboeta. E mais preocupado ainda fico
quando penso que nessa altura provavelmente teremos de falar em inglês para
nos entendermos com os espanhóis e - ai de nós! - talvez com os próprios
brasileiros."

7 Comentários:

Às 10:53 da tarde , Blogger orelhinhas disse...

Faço uma correcção ao que o senhor Vital Moreira escreveu.

Na realidade, a palavra VELHO, em Lisboa, não se diz "vâlho", mas sim "vélho".

Quem diz "vâlho" são algumas pessoas com pronúncia do norte, para tentar disfarçar o sotaque. Tal como vâlho, também acabam por dizer "dezôito"(aqui em Lisboa "inventaram" o dezóito) ou "vinte óito". E também há as "vácinas" que convém estarem em dia.

Mas acho que é esta a riqueza do nosso país. A variedade de termos e sotaques nas várias regiões são fantásticas. E ainda bem que assim é.

Mas também tenho a certeza de que a grande maioria das pessoas que trabalham nos quiosques de Lisboa, são no Norte e do centro do país.

Acho que o Sr Moreira apenas mostrou o seu lado intriguista para atear ainda mais a famosa guerra "norte/sul".

Em "mourês", digo "shokran" Xoila, foi um bom post.

 
Às 10:54 da tarde , Blogger orelhinhas disse...

Corrijo:

"Mas também tenho a certeza de que a grande maioria das pessoas que trabalham nos quiosques de Lisboa, são do Norte e do centro do país.

 
Às 11:25 da tarde , Blogger Uauitaaa disse...

lool muito grande para ler... :P
prefiro so deixar este comentario :P :P

 
Às 11:48 da tarde , Blogger Quarto com vista para o mar disse...

Essa do "valho" não se diz de facto em Lisboa. Mas sei que se diz na região das Caldas da Rainha, por exemplo.
O Prof. Vital Moreira pode ter alguma razão no que diz, mas não deve generalizar, pois há inúmeras excepções à sua teoria. Por exemplo, quanto à comunicação social, a Judite de Sousa e a Fátima Campos Ferreira são do Norte, assim como todos os do Jornal da Tarde e da RTPN!...
E a Judite de Sousa diz "valho", já ouvi muitas vezes!...
Enfim, é normal que cada um goste mais do seu sotaque, porque lhe soa melhor, não é verdade?

 
Às 11:53 da tarde , Blogger Quarto com vista para o mar disse...

errata: onde escrevi "valho" queria escrever "vâlho"

 
Às 1:34 da manhã , Blogger giesta disse...

uchintomas, doichistemas e por aí fora, é em Trás-os-Montes e no Algarve!!!
Mas um dia destes escrevo aqui outras formas irritantes de pronunciar algumas palavras em Lisboa.

 
Às 10:06 da manhã , Blogger orelhinhas disse...

"tefone"

"supermecado"

Estas então são típicas cá da aldeia grande

 

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